quinta-feira, 5 de agosto de 2021

pequeno-burguês



Sentado aqui
esse silêncio indizível das coisas
encara-me, cego
sempre
aqui

ela diz que esse desespero mudo
é parte da minha letargia de pequeno-burguês
ela diz que a tragédia real
não se esgueira pelos cantos de apartamentos financiados
nem se arrasta sobre barrigas cheias e levemente flácidas
ela diz que a tragédia real se impõe, 
salta na jugular,
vinda do outro lado da esquina, 
do outro lado da cama
do outro galho da árvore genealógica
um encontro de sobrevivências,
violências…

o que ela não sabe é que eu sei…
eu sei
essa tristeza que me invade e me soterra
vem do fato de que eu sei...
eu sei

do outro lado do desespero total
da luta constante pela paz evanescente
existe esse desalento sem rosto
esse desassossego sem razão
esse afogar-se lentamente
dos “vencedores”

eu sei, eu queria não saber
mas eu sei…

...e isso ela não sabe

as promessas de paz e bonança
escondem esse conflito sem nome
a necessidade constante de lutar
esconde o vazio da “vitória”

...não há vitória
eu sei

sexta-feira, 23 de abril de 2021

fragmentos: o "epicurista" e a pretensão dos humanos.

Mal me conhece e acha que pode me “salvar”… salvar de quê?! Você diz que entende… entende o quê?! Mal entende o que diz esse corpo. Ah, essas profundidades suas... Ignorantes da obviedade da nudez do rei. O que quero eu com isso?

O que me irrita não é nem esse fingimento. Esse jeito de desejar “sem desejo”, esse tergiversar sem fim... esse teatro. Isso é até compreensível. Civilizados que somos, não? O que me assombra é que você finge com sinceridade… E ainda acha que me "entende”, que pode me “salvar”… Ora, salvar de quê?! 

Da fome?! Estou saciado. Da sede?! Estou bem hidratado. Da morte?! Estou bem de saúde, obrigado…

Você quer me salvar do medo, não? Porém, não é nem capaz de chamá-lo pelo nome. M-E-D-O... Saiba, esse medo não me amedronta mais. Eu só o sinto e sigo meu caminho. O medo que você vê (vê sim! vê bem!) está no seu olho, não em mim. Mas não pode nem admitir. Como eles, aliás…  

Não, não me entende. Não me entende porque não se entende… Não me admira que quem diga o óbvio lhe pareça um doente… Alguém pra ser salvo… Salvo de quê?! Da verdade? Ora, pois…

Se o ato de simplesmente admitir o que as coisas são, o que simplesmente está aí, lhe parece um grito de socorro… Que conhecimento é esse seu? Nem mesmo vivemos no mesmo mundo, me parece. O que pode você deduzir da realidade se não pode nem admiti-la em primeiro lugar? Que sabe você de mim? “Saber de mim” é seu jeito de fugir de si mesma. Mas eu não jogo esse jogo. Não mais. 

Antes, porém, de encerrar esse assunto besta eu tenho que lhe dizer. Essa sua alma, esse “abismo invisível”, esse "dentro sem fim” não tem profundidade nenhuma. É só um jogo de espelhos. Reflexão… Ha! Não é mais que uma capa de ideias criadas pra desviar o olhar. Olha! O profundo está no corpo. E a profundidade do corpo está na flor da pele. A flor da pele que engole. É isso mesmo que você teme… e por isso quer… E só vai ter se pedir, com todas as letras. 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

fragmentos: desejo é desejo.

Desejo é desejo. Nunca é "eterno", nem mesmo muito longo em duração. Há muitas maneiras pelas quais um relacionamento pode dar errado: desde pessoas loucas e violentas batendo em seus parceiros ou mesmo matando-os, até pessoas que ficam juntas por muitos anos, mas o fazem por causa de pressões culturais/religiosas até legais (em alguns Estados “não muito laicos”) ou mesmo “falta de imaginação”, e apenas vivem o tédio. Porque, como eu disse, desejo é desejo. Terá apenas dois finais possíveis: insatisfação e, por isso, sofrimento; ou satisfação e, por isso, tédio (que também é um tipo de sofrimento) 

...desejo é desejo, não se resume à "humano".

E como nos relacionamentos (ou nas atrações que podem levar a isso) duas ou mais pessoas estão envolvidas, você pode encontrar diferentes configurações de sofrimento e tédio. Um dos parceiros pode já estar entediado, enquanto o outro ainda não está satisfeito. Para um, o desejo pode ter passado (ou ter uma intensidade muito menor do que para o outro) ou mesmo nunca ter existido; enquanto para outro o desejo ainda pode ser grande ou até crescente, etc.

É importante saber que os “mecanismos” (ou “forças”) envolvidas nessa atração são impessoais. Ou seja, não levam em conta a felicidade individual dos animais (humanos ou não) envolvidos nesse jogo de atração. É só observar na natureza como muitas vezes esses “jogos” levam a fins violentos e até trágicos. Veja-se os confrontos entre os machos de muitas espécies pela “posse” das fêmeas. Os casos em que um dos parceiros pode chegar a devorar o outro após a cópula (como o caso de algumas aranhas, por exemplo). Ou mesmo os cãezinhos ganindo na rua “engatados” depois de cruzarem… Enfim, a individualidade está “abaixo” desses impulsos que são quase soberanos. O sofrimento de animais humanos individuais não é exceção, faz parte do modo como a atração funciona. 

Parece-me que como seres humanos temos que entender e tomar uma decisão perante isso -- ou seja, a questão tem um aspecto ético, envolve tomada de posição perante uma situação. Pelo fato de sermos (auto)conscientes nos deparamos com esses impulsos. Ou seja, a meu ver, diferente de outros animais, os humanos NÃO SÃO (completamente) instinto, eles TÊM instinto. Isso quer dizer que é esse algo em nós que pode dizer que “tem desejo” que nos faz animais um pouco diferentes. Essa capacidade de (auto)consciência está longe de nos tornar soberanos em relação aos nossos instintos, porém. Ninguém escolhe sentir atração ou estar apaixonado por quem não sente o mesmo. Também ninguém escolhe deixar de amar uma pessoa que ainda a/o ama. Como dito, o mecanismo é impessoal e a condição individual é, digamos, atropelada. Temos que reconhecer essas forças impessoais e parar de simplesmente jogar em um ou outro a “culpa” pelo desejo correspondido ou não. É preciso, me parece, assumir essa condição meio trágica de ser consciente dessa impessoalidade do impulso, mas, ao mesmo tempo, não controlá-la totalmente. Isso deve fazer parte do processo de amadurecimento. Se os impulsos impessoais não têm a felicidade dos indivíduos como prioridade, nós podemos pelo menos tentar diminuir as consequências disso. Nós podemos nos ocupar de diminuir o mal estar envolvido nisso tudo.

...É simplesmente que esse jogo da natureza, da vida, está longe de ser “perfeito” ou “equilibrado” -- quando se olha pra ele do ponto de vista da felicidade e bem estar individuais… É uma bagunça do caralho, na real. 

domingo, 18 de abril de 2021

fragmentos: democracia.

A posição democrática não é a de quem defende o mais fraco porque o considera moralmente superior. Também não é a de quem acha que a iniciativa privada vai salvar a humanidade com a eficiência mercadológica. Nem a de quem acha que a regulação do Estado é que vai salvar a humanidade da mercantilização de tudo...

A democracia é melhor descrita como um campo aberto de conflito em que se tenta (tendo sucesso nisso ou não) equalizar as oportunidades de ataque e defesa. De forma que as forças envolvidas na construção da vida cotidiana possam se enfrentar da forma mais "equilibrada" possível.

Em outras palavras, a democracia parte da aceitação de que o mundo não se divide claramente em "bem" e "mal", nem entre "luz" e "escuridão". A democracia assume que a realidade é "cinzenta", é um "lusco fusco". Onde os contrários se transformam uns nos outros de forma quase caótica e que não é possível saber com toda certeza no que tudo isso vai dar. Se vai dar em alguma coisa. O grande objetivo não é o fim do conflito, mas sim que o conflito se mantenha "organizado" e suportável. Aqui Estado e iniciativa privada podem coincidir em seus interesses ou se enfrentar. Ou se enfrentar hoje e amanhã se unirem, etc.

Não é por caso que as primeiras práticas democráticas surgiram entre gregos politeístas da antiguidade (ou mesmo entre outros "pagãos", como os escandinavos do mesmo período). Não há "monoteísmo" na democracia. O mundo não está se dirigindo para um "juízo final" na democracia. Os opostos dançam, criam e destroem. Se modificam. Se tornam uns nos outros. E isso não tem um fim "absoluto" definido.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Jó.

“Há minas para a prata
e lugares onde o ouro é refinado;
o ferro é extraído da terra,
e o cobre é fundido no minério.
Os mineiros conquistam a escuridão
e cavam tanto quanto podem
até o minério na escuridão e nas densas trevas.
Ali onde ninguém habita eles cavam um poço,
uma passagem para os pés deles sobre o esquecimento;
longe do povo, suspensos no espaço,
eles balançam para frente e para trás.

“Enquanto a terra está [pacificamente] produzindo o pão,
por baixo, ela está sendo agitada como que pelo fogo;
suas pedras têm veias de safira,
e há partículas de ouro.
As aves de rapina não conhecem esse caminho,
nem o viu o olho do falcão;
as feras orgulhosas jamais pisaram nele,
nem o leão passou por ele.

“[Os mineiros] golpeiam a pederneira
derrubando montanhas até suas raízes
e escavando galerias nas rochas,
o tempo todo procurando por algo de valor.
Eles represam os ribeiros de modo que não fluam
e trazem o que estava escondido à luz.”
(Iyov [Jó] 28:1-11)

domingo, 5 de maio de 2013

O vale das sombras da morte.

Nós somos os que vão até o limiar das fronteiras
Encaramos os abismos mais vertiginosos
Não negamos as bestas das profundezas
Nem o clamor furioso dos exércitos
Conhecemos o ciúme e o desespero
O ódio e a angustia nos rasgaram ao meio
Tomamos do cálice da arrogância
E fomos apresentados à solidão mais amarga
Bebemos dos mares da tristeza
Até que sobreviesse a loucura dos náufragos
Que confundimos com redenção
Cambaleamos por ruas imundas
Humanos quebrados e maltrapilhos

domingo, 28 de abril de 2013

Um dia limpo

Segue até o campo
Imenso horizonte de verde e azul
A relva cresce alta
Embalada pelo vento
Silêncio
Dias caminhando sem rumo
A espada pesa toneladas na mão direita
Atira-a ao chão
O escudo faz o antebraço esquerdo formigar
Entrega-o à grama
Sentado em paz por um momento
Já não entende a guerra constante
Um dia limpo

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Em Meu Sangue.

Em meu sangue clama uma voz que não é minha
Chama-me de mundos e eras que não conheci
Mostra-me nu e ridículo
Arrogante, impotente, decaído
Em noites de fascínio e terror
Faz de meu coração um campo de batalha
Então abraça-me e embala-me
Como a um filho pródigo
Impávida, severa e doce voz
Clama em meu sangue

domingo, 7 de abril de 2013

Rio.

O rio limitado por margens
Apressa-se em correr pro mar

O grandioso abraço do mar
Que tudo recebe e tudo leva
Em sua larga bondade
Receba a pele que já não serve
Em sua estrita severidade
Carregue-a para longe

sábado, 23 de março de 2013

Pureza.

“O ch’uan teng lu relata um fascinante encontro entre Tao-hsin e o sábio Fa-yung, que vivia num solitário templo do Monte Niu-t’ou e era tão puro que os pássaros lhe costumavam trazer oferendas de flores. Enquanto os dois homens falavam, um animal selvagem rugiu ali perto, e Tao-hsin deu um salto. Fa-yung comentou, ‘Vejo que está ainda contigo!’ ― Referindo-se, claro, à ‘paixão’ (klesa) instintiva do susto. Pouco depois, aproveitando o momento em que não era observado, Tao-hsin escreveu o caracter chinês que significa “Buda” na rocha em que Fa-yung costumava sentar. Quando Fa-yung voltou ao seu lugar, viu o nome sagrado e hesitou em sentar-se. ‘Vejo’, disse Tao-hsin, ‘que está ainda contigo!’. A esta observação Fa-yung alcançou o perfeito acordar... e os pássaros nunca mais lhe trouxeram flores.”
(O budismo Zen, WATTS, Alan, p.115)